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Editorial #3

Sotaque. Uma maneira muito rápida de identificar de onde uma pessoa é ou não. Todos tem sotaque. Mas existe, invariavelmente, uma hierarquia social estabelecida de sotaques — concorde ou discorde, lá estará sempre um sotaque ou uma forma de falar que se prevalece à outra. São variações dialetais, dentro da mesma cidade, inclusive, seja por faixas etárias ou por bairros e distritos que sofrem, às vezes, alguma influência exterior àquela comunidade.

Zlatan Ibrahimovic, por exemplo, não fala sueco como um alguém de Malmö, sua cidade natal. Ele fala com sotaque marcado do dialeto de seu bairro, onde há forte presença de imigrantes. Não bastasse suas raízes e seu sobrenome, ele também marca essa diferença quando abre a boca. É — e foi — discriminado por isso.

Sotaque é um fenômeno linguístico que a Corner se interessa. Não pra discutir se é bolacha ou biscoito. Óbvio que não. Mas o sotaque traz consigo muito mais que a pronúncia diferente de uma sílaba ou fonema. Traz o diferente. E a riqueza está presente na diferença, na pluralidade, na tolerância entre divergentes. Não à toa, as palavras de Dejan Petković, Juan Pablo Sorin, Tim Vickery e Ricardo Rocha estão impressas nas três primeiras edições da Corner.

Ricardo Rocha saiu do nordeste bem novo. De sua Recife. Do seu Santa Cruz. Mas seu sotaque permanece quase intacto. Qualquer um que leia estas palavras vai ter um sotaque próprio de sua geração, de seu lugar, de sua classe social e vai observar somente o sotaque alheio, vai sempre preferir como soa suas palavras, o som do S, as entonações e vocabulário.

É exatamente aí que a Corner entra. Rejeitando a exclusão do trema, e defendendo que cada um fale como prefira. O modo de falar é muito maior que uma simples escolha. É um rasgo cultural marcado pelas influências passadas de outras culturas através dos anos.

A hierarquia de sotaques existe. Não era pra existir. Uma pessoa deveria ser julgada por aquilo que é capaz de fazer. Sim. Talvez. Mas também é avaliada por como ela fala. Há uma resistência histórica com relação à lideranças extra-campo no futebol brasileiro. São pouquíssimos os casos de treinadores nordestinos que tiveram oportunidades em clubes grandes do Sul e Sudeste. Nem falar em Seleção Brasileira.

Zagallo seria a contraprova. Não, não é. Nasceu em Alagoas, é verdade. Mas se mudou para o Rio de Janeiro aos oito meses de idade. Seu sotaque é mais carioca que o Pão de Açúcar. Raro é ver um Juninho Pernambucano comentando jogos na principal emissora do país ou um Ricardo Rocha, no principal canal esportivo do Brasil. Mas, pelo menos, esses poucos exemplos já existem na TV. No futebol continuam sendo escassos. Givanildo Oliveira e Oliveira Canindé que o digam.

Tanto Juninho Pernambucano quanto Ricardo Rocha vão incomodar muito mais por seu sotaque do que por eventuais análises ou críticas supostamente equivocadas. É o mesmo caso de quando um jogador negro erra um passe ou um gol. A cor de sua pele requer um outro predicado, como se errar o passe ou o gol não fosse tão errado caso fosse branco. Mas racismo é outra pauta, aqui o preconceito vai ditar a tônica desta edição.

Edição que só foi adiante — mais uma vez — graças a um financiamento coletivo bem sucedido. A missão da Corner continua sendo a mesma: conectar pessoas que acreditam que futebol vai muito além das discussões sobre arbitragem e análises táticas.

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Jornalista, publicitário e fotógrafo. Estudou comunicação social na Universidad Nacional de La Plata. Para Martinho, não existe golaço de falta (nem aquele do Roberto Carlos em 1997 contra a França ou de Petković em 2001 contra o Vasco). Aos 11 anos, deixou o cabelo crescer por causa do Maldini. Boicota o acordo ortográfico.

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