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A engenharia genética do futebol brasileiro

Como os treinadores húngaros mudaram o DNA do jogo bonito

Que o Brasil tem uma identidade futebolística muito própria ninguém duvida. Que essa identidade não se forjou sozinha, também. Durante décadas, o futebol brasileiro bebeu de várias influências para se transformar num exemplo para o Mundo e, apesar da importância da escola vizinha rioplatense e do papel das distintas comunidades emigrantes, não houve maior influência do que a oferecida pelos treinadores húngaros, que dos anos 1930 aos anos 1950 ajudaram a criar as idéias de jogo pelas quais o Brasil seria admirado em todo o mundo.

Inevitavelmente, quando o Brasil venceu o seu primeiro Mundial, em 1958, houve uma sensação de justiça depois que seleções canarinhas estiveram perto do título nas duas edições anteriores. O que a equipe de 1958 tinha de diferente, no entanto, para além do talento individual superlativo de alguns dos maiores jogadores de todos os tempos, era a matriz de jogo amadurecida ao longo da década pelos treinadores e jogadores brasileiros. Uma matriz com selo húngaro. Desde a defesa de quatro ao jogo dos laterais ofensivos, da capacidade de jogo de toque até as sobreposições no ataque, aquela seleção, uma das grandes esquecidas da história — sobretudo porque depois houve 1970 e 1982, duas seleções igualmente brilhantes e apoiadas por um precioso aliado, a televisão — era um verdadeiro compêndio do melhor talento individual brasileiro e do melhor da escola técnica danubiana, encarnada pelos húngaros que chegaram ao Rio de Janeiro e São Paulo para transmitir uma mensagem que mudaria a história do futebol. Precisamente na mesma época que Argentina e Uruguai entenderam que o seu estilo de jogo romântico tinha chegado ao fim, derivando a partir daí num modelo muito mais físico e duro, o Brasil recebeu a mesma semente que floresceria em outros locais emblemáticos, da escola holandesa à soviética, sempre a partir de uma mesma base, a do futebol-arte praticado desde os anos 1920 às margens do rio Danúbio, entre Viena e Budapeste. Foram vários os treinadores magiares que deixaram uma marca profunda no futebol do Brasil, mas nenhum tão pioneiro como Dori Kruschner [ou Izidor Kürschner], o homem que revolucionou o jogo do Flamengo na década de 1930.

Kruschner nasceu em 1885, em Budapeste, quando a capital da Hungria era apenas uma das principais cidades do império Austro-Húngaro. Apaixonou-se jovem pelo emergente futebol, o novo esporte socialmente aceito na sociedade centro-européia, e foi jogador do MTK Budapeste por longos anos. Foi precisamente aí que conheceu Jimmy Hogan, o homem que é provavelmente o treinador mais influente de todos os tempos. Com o inglês — que mais tarde influenciaria dezenas de outros treinadores —, aprendeu os principais conceitos básicos do jogo de passe, de toque curto e da profissionalização da abordagem mais tática de um jogo que, até então, ainda era disputado de um modo bem desorganizado. Quando Hogan partiu para a Inglaterra, em 1918, no final da Primeira Guerra Mundial, foi Kruschner o homem que o sucedeu no comando do clube e, depois de ter sido o principal responsável pelo relançamento do futebol na vizinha Alemanha, em 1937 chegou ao Rio de Janeiro, fugindo da perseguição contra a comunidade judaica, para fazer o mesmo com o Brasil. Nos três anos seguintes, treinaria primeiro o Flamengo e depois o rival Botafogo, revolucionando para sempre a vida dos dois clubes, dando-lhes uma identidade tática e de jogo que permaneceria nas décadas seguintes. O futebol que Kruschner defendia era, taticamente, muito mais evoluído que qualquer outro praticado no país, tinha um enfoque particular nas exigências físicas do treino — pela primeira vez se realizaram exercícios sem bola de caráter tático no Brasil — e na preparação física, mas também na forma de abordar o jogo, com passes curtos, linhas juntas e coordenadas desde a defesa até a frente de ataque.

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Jornalista e escritor. Autor dos livros “Noites Europeias”, “Sonhos Dourados” e “Toni Kroos: El Maestro Invisible”, “Sueños de la Euro” e “Johan: a anatomia de um gênio” Futebol e Política têm tudo a ver, basta conectar os pontos. O coração de menino ficou no minuto 93 da final de Barcelona. Estudou comunicação na Universidade do Porto.

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